Lá vem outra vez aquela
música do fim do dia, pensou um pouco enfastiada. Catarina olha o
céu escurecente da cidade através da janela alta. Os brilhos que se
misturam, vindos de fora e vindos de dentro num produto confuso e
disfórico, ditam-lhe uma repetição por si mesma insuportável.
A música, essa,
continua, longínqua mas fluída. Algo cortante. Se estivesse mais
perto poderia claramente tornar-se punhal. As intenções da lâmina
não são óbvias... assim, pelo sim, pelo não, Catarina mantém a
música à distância. Deste modo pode ouvi-la com os olhos fechados,
a testa encostada ao vidro. Apenas um ruído incómodo, sem
consequências demasiado danosas, sem nenhum sentimento de ameaça.
Simplesmente o longo e vicioso repetir de sons. Hoje, como todos os
dias.
Não sabe bem porque se
senta naquele parapeito todos os dias, à mesma hora (aquela, a do
final do dia, que termina quando o último minuto da última hora
solta o último segundo), se este repetir lhe traz tanto fastio e
lembrança contínua de ser uma apenas e apenas finita. Se esta
música a lembra sempre do que lhe falta e de quem não é.
Abre os olhos para ver se já aprendeu a ver melhor no escuro. Logo os fecha de imediato, cerrando-os ora com força. Catarina concentra-se com esforço, procurando decifrar cada nota. Ouve com atenção e consegue distinguir o som da voz da mãe que queria ter sempre junto de si enquanto ainda bebé. O som desmaiante da água que não pode beber quando tinha sede. As notas graves do pai que não pode impedir de partir O grito cortante do choro do filho que não pode abraçar. O horizonte e o braço que não alcança. Tudo o que não pode e não sabe, mas quer. Sempre o que não pode.
É este o grito, a
música do fim do dia que se repete nos olhos e nos ouvidos de
Catarina.
Esta noite sente-se,
mais uma vez, farta, cheia de coisa nenhuma, sufocada. A janela já
não embala, só amortece o som, de outra forma punhal.
Catarina está farta, o
vómito a surgir, convulsivo e compulsivo. A janela já não serve, o
vidro confunde-se consigo na transparência que é dos dois. Resiste
à fusão e, num ímpeto de quem quer e não quer sair da sua vida
entorpecida e semi-adormecida, abre a grande janela e chega-se,
ébria, à varanda. Claramente a música fica
agora mais perto. Mais intensa. Perigosamente perto. Catarina sabe
disso, sabe que na varanda a música não pode ser mais música.
Torna-se ruído estridente e ensurdecedor. Este não poderia ouvir
todos os dias, ficaria surda face à insistência.
Catarina não consegue
ficar mais do que apenas alguns minutos, os tais, os da última hora.
Tem que transformar o ruído monstruoso na já tão conhecida e
insuportável música. Ela que venha outra vez - pensa desafiante,
mas cobarde. - Mal por mal, vou morrendo devagarinho.
(Autor desconhecido)
Senti um arrepio ao ler este texto e senti toda a angustia que transparece nele...
ResponderExcluirUm beijo