Zona Interna do Pulso
ou Da Transparência - parte III
ou Da Transparência - parte III
Era uma vez uma menina
chamada Mariana. Não. Outra vez. Era uma vez uma mulher chamada
Mariana. Mulher ainda menina. Não pelo aspecto ou aparência física,
mas pelo sua eterna lupa de ver o mundo, olhando sempre os outros
como adultos, maiores do que o que são realmente, a quem se pede
infinitamente a aprovação impossível.
Neste dia, Mariana era
mulher a passar a ferro. Mais uma noite como as outras. Mais um final
de noite desgastado, empurrado e arrancado ao último fôlego de
Mariana, cujas costas desejavam ardentemente uma superfície onde
alongar e depois contorcer um pouco, deixando o momento de dor ceder
aos poucos para uma réstia de prazer, por comparação com a tortura
anterior.
A pilha de roupa
aumentava por cima da máquina de lavar roupa. O desânimo no olhar.
Só mais esta camisa, só mais aquelas calças. Depois poderia
descansar. Sempre o depois, o eterno prazer adiado. Mas que nunca
chegava, a não ser na perspectiva de um passo que seria sempre dado
à frente, mas permanecia como projecto, futuro continuamente adiado.
Mariana não desgosta de
passar a ferro. O automatismo da tarefa permite-lhe a oportunidade de
um cenário que se abre apenas perante os seus olhos. O pensamento
vagueia. E vagueia. E volta a vaguear.
Com o tempo a mulher
menina começou a apagar-se, a ficar amarelecida, como uma camisa
onde alguém deixou um ferro quente pousado. Não muito quente.
Suportável de início, mas implacável se esquecido. Começava a
fazer buraco... De tanto se ir esbatendo, começava já, bem
devagarinho, a desaparecer. Ao ponto de quem entrasse naquela cozinha
poder vislumbrar a janela que fica exactamente por detrás de
Mariana. Ou mesmo de pensar que um ferro passava a roupa sozinho...
Com um bocadinho mais de cuidado, era possível perceber que era uma
mulher menina. Mas já não era possível perceber, mesmo com
cuidado, se era mulher, se era menina. Antes uma mistura das duas que
já não era nenhuma delas.
Estranho, pensou Mariana,
não me sinto existir... O tempo passou e, como todo o tempo que
passa, torturou. De tal maneira, que Mariana já não se sentia
existir fisicamente, não se conseguia ver ao espelho ou mesmo
lembrar-se sequer de o fazer.
Existes, corpo? -
indagava ela, toda mente. Contudo, sentia-se mente ludibriada, pois
não lhe encontrava as sensações, desprovida da matéria.
Foi quando, enquanto
passava distraidamente a ferro um colarinho difícil de passar, a
exigir precisão, mas não tanta que a mente não continuasse a
percorrer caminhos sem toque, a ponta do objecto escaldante lhe tocou
a pele sensível, mesmo a da parte interna do pulso, onde o bater o
coração já não se fazia sentir. De imediato, a retirada da mão.
Brusca no movimento, surpreendida na reacção. Mariana estarrecia,
os olhos muito abertos, a mão direita que largara o ferro para
massajar o esquerdo. Surpresa pela própria reacção, mas sobretudo
pela sensação que já não sabia sequer decifrar. Afinal sentia...
e era como algo de totalmente novo, sem memória de sensações
anteriores.
Foi então que Mariana
iniciou, devagar, o hábito de, nos seus intermináveis serões
dedicados a passar a ferro, começar a deixar resvalar o objecto
metálico quente na direcção da pele. As marcas íam ficando, mas
assim ao menos não só sentia, como na realidade se via. Surgia e
definia. Mariana, um vulto revelado pelas queimaduras. Que haveria de
mais penoso do que não sentir?... pensava enquanto mais uma peça de
roupa deslizava com ligeireza nas suas mãos marcadas.
Até que um dia, ao ligar
o cabo eléctrico do ferro à tomada, preparando-se para mais uma
sessão de sensações, Mariana decidiu ouvir música. Novamente os
olhos abertos, a surpresa. Há quanto tempo... Desta havia
memórias... As pálpebras tensas deram lugar ao relaxamento dos
tecidos e o olhar tornou-se meigo e aveludado. O braço deslizou num
movimento fluido e o ferro dançou por entre os vincos da roupa.
Mesmo os mais teimosos deixaram de ter importância. O tempo em que
se demorava em cada dobra, em cada reentrancia, em cada bolso ou
intervalo entre botões, fazia com que a busca da perfeição em cada
pedaço de algodão liso se tornasse exercício lúdico e ritmado,
agora com banda sonora. A melodia prosseguia e, com ela, Mariana
navegando por entre o fumo do vapor do ferro, os olhos semi-cerrados,
o corpo colocando-se lentamente menos tenso, mais sinuoso, mais
consciente da dor, mais perto dela própria, toda mente, nem menina,
nem mulher. O corpo acompanha o movimento do braço que investe na
roupa de forma suave e fluída.
É então que novamente
num colarinho mais desafiante, o ferro se aproxima perigosamente da
zona interna do pulso. O hábito, a dor tornada prazer, levam Mariana
num determinado caminho. O seu braço hesita, o movimento fica
suspenso por uma qualquer sensação recente, guardiã de memórias
ancestrais. Mariana sabe que a memória faz toda a diferença. Sabe
também que o que relembrou hoje é diferente da sensação do ferro
quente na pele. É que agora Mariana pode sentir por dentro. Mariana
está indecisa – a música ou o ferro...
Picasso, Woman Ironing, 1904
a regressar com calma para reler e retemperar forças...
ResponderExcluirabraço de mar